terça-feira, 18 de novembro de 2008

Sabias que... (V)

As lendas ou mitos sempre me intrigaram. Apesar de saber que são fruto da oralidade, susceptíveis de distorção ao longo dos tempos, restando alguns testemunhos, com certeza imaginativos e fantasiosos, que os transportam para a escrita, para que sobrevivam, acredito que têm um fundo de verdade. E é essa verdade que busco cada vez que leio ou oiço uma lenda. Foi essa busca que iniciei no dia em que ouvi falar, pela primeira vez, na Atlântida, na aula de História. Intrigou-me a possibilidade de algum dia ter existido todo um continente que terá desaparecido misteriosamente sem deixar vestígios.
Nesse dia, estava desejosa de chegar a casa dos meus avós para poder falar com o verdadeiro especialista em mistérios e mitos como este da Atlântida: o meu avô!
«Avô, avô, já ouviste falar da Atlântida?» Gritei eu, assim que entrei em casa. Encontrei a minha avó perto do fogão e, antes que ralhasse comigo por causa da gritaria, fui dar-lhe um beijo. «O avô?», perguntei eu sem demora. «Boa tarde!» respondeu a minha avó em tom de censura. «Isso são maneiras de entrar em casa, aos gritos e sem cumprimentar as pessoas? O teu avô está na sala. Vê se o cumprimentas antes de o bombardear com perguntas.» Deixei a minha avó ainda a resmungar e corri para a sala. Lá estava o meu avô, na sua poltrona, a ler um livro, o seu único vício, com os óculos na ponta do nariz. Podia não parecer, mas aquela poltrona estava estrategicamente colocada de forma a usufruir da luz natural que entrava pela janela. Essa era uma das poucas exigências do meu avô. Tudo podia mudar naquela sala menos a poltrona no seu lugar cativo. «Olá, avô!» Corri para ele, que já estava de braços abertos para me receber. Dei-lhe um beijo e não perdi mais tempo com cumprimentos, exigidos pela avó. «Avô, hoje falámos da Atlântida, na aula de História! Como é que é possível ter desaparecido? Nem sabem se alguma vez existiu… Existiu, avô?». Eu não tinha qualquer dúvida que o meu avô saberia alguma coisa sobre a Atlântida. De certeza que já tinha todo um conceito ou teoria sobre isso. E eu estava ansiosa por o saber. O meu avô sorria. Percebia-se a satisfação dele ao abordar estes temas. «Sabias que os primeiros relatos escritos sobre a Atlântida, ou os mais antigos que conseguiram chegar até aos nossos dias, são de um conhecido filósofo grego, chamado Platão? Este descreveu a Atlântida como um continente perfeitamente normal, mas com uma enorme riqueza vegetal e mineral, povoada por uma civilização tecnologicamente evoluída para a época o que a tornava especial e única.» Acomodei-me bem junto ao meu avô, para não perder uma palavra que fosse da história que ele começava a contar. «Era uma vasta área, localizada no centro do oceano atlântico, com grandes planícies e grandes montanhas, dividida em dez reinos, sob protecção de Poséidon, o deus dos mares, da mitologia grega. Conta-se que por desrespeito a este, foi convocado um concílio dos deuses, para se decidir o castigo a dar aos atlantes desrespeitosos. E daí resultou os grandes movimentos tectónicos. A Atlântida tremeu violentamente, o céu escureceu como se fosse noite, os campos de cultivo e as florestas arderam e, por fim, todo o continente foi submerso por ondas gigantescas» O meu avô parou de falar e eu só ouvia a minha respiração e o barulho dos pratos que estavam a ser transportados, do armário para a mesa, pela minha avó, ao fundo na cozinha. A história não ficou por aí, eu precisava saber o que tinha acontecido às pessoas, a todo o continente... e o meu avô não se cansou de responder a todas as perguntas que lhe fiz. Por fim, já mais satisfeita, fiz as últimas questões: «Isso aconteceu mesmo, avô? A Atlântida existiu mesmo? Ou é só uma história?». O meu avô pareceu chocado. «Claro que aconteceu! Não há nada que prove o contrário. E mais, o facto de ter sido submersa, não quer dizer que tenha desaparecido para sempre… », disse duma maneira que eu já conhecia, prometendo desvendar mais mistérios. «Mas, avô, se existiu, porque é que dizem que não? A Professora contou que toda a gente conhece a Atlântida mas que jamais alguém conseguiu vê-la. Muitas pessoas já procuraram, mas que nunca a encontraram… Se existe, onde está?». O meu avô sorriu e respondeu: «Mais perto do que pensas!». Levantou-se da poltrona, desviando-me do seu colo com delicadeza, esticando o braço para alcançar um livro da estante. O livro era pequeno, com capa que me parecia couro claro, com umas letras douradas grafadas na lombada grossa que diziam “Cartas e Mapas”. Sentou-se de novo batendo no braço da poltrona, convidando-me a sentar aí, para que tivesse mais espaço para manusear o livro. Abriu-o cuidadosamente, passando algumas folhas, todas elas um pouco amarelecidas e gastas nas pontas, não pelo mau uso ou uso excessivo, mas sim, pelas marcas do tempo. Achando a página que queria, olhou para mim e sorriu, convidando-me a olhar melhor. Dizia “Atlantis Map”, em letras manuscritas. «O mapa da Atlântida!», traduziu o meu avô, sabendo que eu não tinha entendido. O meu coração disparou. O meu avô tinha um mapa da Atlântida?? O continente perdido que ninguém sabia onde ficava?? Olhei surpreendida para o meu avô como se ele guardasse um terrível segredo e disse num sussurro como se tivesse medo que alguém nos ouvisse: «Tu tens o mapa da Atlântida, avô?». A minha pele estava toda arrepiada e ficava ainda mais por o ver tão calmo. Desdobrou o manuscrito, que estava dobrado em quatro, preso na encadernação apenas por um dos quartos da folha, e pude ver o mapa por inteiro. Apontou para o local onde dizia “Atlantis” e sorriu mais uma vez. «A Atlântida ficava bem no meio do Oceano Atlântico, na região onde hoje se encontram as ilhas portuguesas, a Madeira e os Açores. Aliás, os Açores não são mais que os cumes das montanhas não submersas da Atlântida.». Olhei bem o mapa, aproximando-me mais do livro, não querendo acreditar.


O meu avô continuou, divertido: «Como vês, a localização da Atlântida não é assim tão desconhecida como muitos querem fazer crer. Os motivos desse secretismo podem ser diversos, uns para preservar a Atlântida de saqueadores sem escrúpulos, outros por ganância, procurando encontrar algo que os enriqueça, outros porque querem convencer o mundo que a Atlântida fica noutra parte qualquer porque lhes é mais conveniente. Mas, há um motivo mais forte que todos os outros… Contam que os atlantes que conseguiram sobreviver mantiveram este segredo, sob exigência de Poséidon e, com medo de o enfurecer de novo e aos Deuses, nunca o quebraram. Esse segredo tem sido preservado ao longo de milhares de anos e gerações.» Fez uma pequena pausa e retomou. «Mas as provas estão aqui…» Disse apontando para o mapa, «…nos diversos mapas existentes. E todos eles indicam a mesma localização.».
Eu estava plenamente convencida e ainda hoje guardo este precioso livro que contém diversos mapas antigos.
Essa foi a verdade que encontrei na lenda da Atlântida, pois, de facto, esses mapas existem, essa teoria existe. Tal como o meu avô disse, as nove ilhas dos Açores são tão-somente os altos cumes da Atlântida que ficaram acima do nível do mar. E eu acredito!
Mas, os açorianos, ou atlantes se preferirem, que não temam os Deuses… pois, apesar de conhecer a verdade sobre a localização da Atlântida, eu prometo que não conto a ninguém… Que Poséidon fique sossegado!


sábado, 1 de novembro de 2008

Sabias que... (IV)

Acredita em fantasmas? Não? Mas, de certeza já ouviu falar deles e de certeza que conhece alguém que já os viu… Todos têm uma opinião acerca de fantasmas e aparições, quem são, de onde vêm, porque é que aparecem, se fazem mal, se fazem bem, se é real, se é fantasia…
O meu avô tinha uma opinião muito peculiar sobre os fantasmas que sempre achei interessante. A primeira vez que a ouvi era ainda pequena e foi no dia em que acordei a gritar por causa de um pesadelo. Corri para o quarto dos meus avós ainda meio a dormir e com as lágrimas a correrem de medo, tal como eu, quando alguém me agarrou no meio do corredor. Ainda me debati tentando libertar-me do pesadelo que conseguira apanhar-me, quando ouvi ao meu ouvido, para grande alívio meu «Shsss, é o avô...», sossegando-me, enquanto sentia que me pegava ao colo e me abraçava, confortando-me da minha má experiência.
Depois de me levar para a cozinha oferecendo-me o tradicional copo de leite quentinho para acalmar, o meu avô ouviu pacientemente o meu pesadelo. Do pesadelo nada me recordo para além de que teria sido medonho, com certeza, mas sei que foi nessa altura que me perguntou «Sabias que enquanto sonhas podes estar a assombrar alguém?». Aquilo não me pareceu nada justo. Quem se assustou com o sonho, ou melhor, pesadelo fui eu. O meu avô continuou ignorando os meus pensamentos, empurrando somente a chávena em direcção à minha boca para não me esquecer de beber o leite. «É verdade! Enquanto sonhamos visitamos lugares que nunca vimos e pessoas que não conhecemos. Na verdade essas pessoas existem, existiram ou existirão e nós estamos mesmo a assombrá-las.» Não me parecia muito certo, nem me estava a ajudar a acalmar... muito pelo contrário. Acho que o meu avô percebeu as minhas hesitações e continuou: «Claro que nem sempre nos vêm e podem mesmo nunca nos ver. É preciso ter uma presença física muito forte e sólida para que nos vejam. Mas, assim como tu sonhas, e enquanto o fazes podes estar a aparecer como se fosses um fantasma a alguém, outras pessoas sonham e podem te assombrar.». «O quê, avô?», perguntava eu mais assustada que incrédula, «Se eu sonhar contigo, tu podes ver-me? E ficas com medo de mim?». O meu avô riu com vontade e explicou, recostando-se na cadeira velha mas de boa madeira, «Não é simples de compreender… mas repara, podes sonhar hoje, mas eu só te verei daqui a uns anos…». Parou para ver a minha cara, pois sabia que esta afirmação baralhava-me mais ainda. «Vejamos um exemplo, tu sonhas hoje comigo e no sonho vês-me mais velho, isso quer dizer que quando for mais velho é que poderia te ver, se a tua presença fosse fisicamente forte, como te expliquei há pouco… Ou seja, os sonhos permitem-te viajar pelo espaço e pelo tempo. Olha, lembras-te do Sr. Antoninho?». Perguntou-me ele, lembrando-se de mais um exemplo. Eu lembrava-me do Sr. Antoninho como o velho rezingão e barbudo que gostava muito de conversar com o avô, mas que não gostava do nosso cão, afastando-o sempre com os pés cada vez que ele se aproximava para o cheirar. Não simpatizava nada com ele e já o imaginava facilmente como uma assombração… «O Sr. Antoninho teve uma experiência dessas. Durante anos teve um sonho recorrente em que visitava uma casa. Conseguia descrevê-la na perfeição, de tantas vezes que já a vira, embora não a conhecesse nem fizesse a menor ideia da sua existência. Até que um dia, em visita ao seu filho na Inglaterra, enquanto procuravam casa, porque este ia casar e pretendia comprar uma, encontrou aquela que via nos seus sonhos. Reconheceu-a imediatamente, descrevendo-a antes de entrar, deixando os seus familiares muito surpreendidos, porque de facto, ao entrarem na casa, o Sr. Antoninho tinha acertado na sua caracterização. Era a casa com que tinha sonhado fazia anos. E mais surpreendidos ficaram quando os donos da casa, que estavam presentes, o viram e o reconheceram, imediatamente, como o homem que andava a assombrar a casa, motivo pela qual a pretendiam vender.» O meu avô ria-se. Continuava a achar graça a esta história antiga que o Sr. Antoninho lhe havia contado, porém não se ria de desdém, até porque, como já vos contei, o meu avô acreditava nestas coisas, mas pela a infeliz coincidência. Imaginámos a cara do casal quando viram o Sr. Antoninho e não conseguíamos parar de rir. Ri tanto que esqueci o meu pesadelo e voltei para a cama onde o meu avô aconchegou as cobertas, despedindo-se com um beijo na testa.
Hoje sei que esta teoria existe e é defendida por muitos investigadores psíquicos. Há vários relatos de histórias semelhantes à do Sr. Antoninho e outras que são também conhecidas como premonições. A maioria das aparições envolve apenas uma testemunha, mas cerca de um terço foram vistas por várias pessoas.
Pode ser uma teoria para explicar o sonho ou pode ser uma teoria para explicar o sono, pois, como se sabe, ainda não está clarificado ou provado cientificamente porque é que o ser humano necessita dormir. Sabe-se que é essencial para o bem-estar e para a saúde, mas a questão mantém-se e ninguém sabe ao certo. O facto é que as histórias de fantasmas são tão antigas quanto a existência humana, sempre as houve e sempre as haverá. Acredite-se ou não…
Nunca pensei que o meu pesadelo levasse a esta descoberta. Mesmo você, que não acredita, tem que concordar que é uma teoria interessante. Deixa-nos a pensar. A mim deixou...
Desde então, quando acordo, tento lembra-me o que sonhei, por vezes com dificuldade, acho que o nosso cérebro nos poupa um pouco destas experiências paranormais… mas sempre me preocupa se assombrei alguém naquela noite. Já quando adormeço, procuro pensar que estou em jardins espaçosos, só rodeada de árvores e flores, sem ninguém por perto para assombrar, porque, como diz o sábio e velho ditado, “Mais vale prevenir que remediar”. Ás vezes funciona, outras não. Aproveito para me desculpar sinceramente se meti medo a alguém… e, já agora, peço a todos os que me conhecem ou não… tente não sonhar comigo… por favor!!

sexta-feira, 18 de julho de 2008

Sabias que... (III)

As tardes das sextas-feiras eram as minhas preferidas. Íamos todos, eu, os meus primos, os meus avós e o Bilas, o nosso cão rafeiro, até a um moinho velho que ficava a mais ou menos a dois quilómetros da casa dos meus avós. Era o sítio ideal para brincarmos. Para nós, aquelas paredes velhas e degradadas não eram de um moinho, mas sim, de um castelo enorme, onde eu e os meus primos imaginávamos um dia poder viver como reis e rainhas. João, o mais velho, fazia questão de ser o rei sem nunca dar hipótese ao Zé que exigia o mesmo. Comigo não havia picardias por ser a única rapariga. Tinha direito a ser o que quisesse, rainha, princesa, aia, qualquer coisa desde que não retirasse o protagonismo aos rapazes. Quando lá chegávamos, os papéis estavam já devidamente distribuídos: eu, independentemente do título que escolhia, tinha sempre as funções de limpeza e arrumação do “castelo” e a eles cabia-lhes sempre o papel de mandar-me limpar e arrumar esse “castelo”. A brincadeira começava com a procura de paus, troncos, folhas, pedras, tudo o que pudesse substituir os objectos necessários num castelo. Logo a seguir começava a encenação. Encarnávamos os nossos papéis com muito empenho e dedicação, e muitas vezes, dávamos continuação à história que já havíamos começado na sexta-feira anterior. A brincadeira durava quase toda a tarde até que um de nós se chateava com alguma coisa e aí começava a confusão. Discutíamos, aos gritos uns com os outros, por vezes, ou melhor, a maioria das vezes, com contacto físico, até que a avó ou o avô intervinham e obrigavam-nos a parar. Então, cada um ia para o seu lado, evitando olhar uns para os outros e começávamos a brincar sozinhos ou só com o Bilas, mostrando que não precisávamos de ninguém para nos divertirmos.
Era o meu avô que quebrava o silêncio e a separação entre nós com as suas histórias, despertando a nossa curiosidade: «Vocês fazem-me lembrar histórias muito antigas que costumava ouvir. Querem que vos conte?» Ainda amuados, respondíamos afirmativamente com a cabeça, sem proferir uma palavra. «Há muitos anos atrás, as pessoas, quando eram acusadas de fazer algo errado ou que fosse contra os princípios morais da época, eram sujeitas a um duelo para provar a sua inocência.» A sorrir acrescentou: «Parecia mesmo o que estavam a fazer, não era?». Nenhum de nós se manifestou. E o avô continuou. «Nessa época, achavam que, com esse método, estavam a entregar a decisão a Deus, ou seja, Deus salvaria os inocentes. Há uma história sobre o Conde de Monforte que nos conta um pouco sobre esses duelos. Era um nobre muito elegante, que chamava a atenção de muitas raparigas e, certo dia, terá se envolvido com uma dama comprometida. Claro que já naquela altura os boatos espalhavam-se rapidamente e depressa chegou ao conhecimento do marido traído. Este não deu tempo a nenhum dos dois para esclarecerem a verdade. Decidiu entregar o assunto aos juízes responsáveis por esses julgamentos, para que se resolvesse através de um combate. Conde de Monforte sempre bradou a sua inocência dizendo que seu coração pertencia a uma outra dama, uma jovem de origens modestas, mas de nada lhe valeu, pois, não conseguindo vencer o duelo a cavalo que durara três dias, foi obrigado a viver em exílio fora do seu país, longe da família e da sua recente paixão». Eu, talvez devido ao papel que encarnara na brincadeira com os meus primos, já me imaginava no lugar dessa tal jovem enamorada vendo o seu amado afastar-se para sempre e, como romântica que já nessa altura era, afigurava rapidamente na minha cabeça, um encontro futuro entre o casal, uma troca de cartas, um romance perfeito, enfim, um final feliz… Mas depressa retomei o que o meu avô dizia, «…esses combates eram vistos por toda a população e eram dias considerados de festa realizando-se em sítios estratégicos, de forma a serem vistos por todos. A maioria das cidades já previa um espaço próprio para estes eventos onde, para além destes duelos, se realizavam também jogos, teatros e festas proporcionadas pela Corte». Nesta altura, já só eu prestava atenção à história que o meu avô contava. Os meus primos, como sempre, depressa se distraíam com qualquer outra coisa, deixando rapidamente de dar atenção ao que o meu avô contava, o que o desgostava muito. Comigo era tarefa fácil, eu era a impressionável da família, a crédula, a sonhadora, e levava muito a sério tudo o que o meu avô contava. Para mim eram factos e não histórias. O meu avô sabia isso e gostava de apimentar a minha curiosidade. Desta vez, olhando só para mim, com os olhos bem abertos, perguntou quase num sussurro, «Sabias que esses julgamentos por duelo a cavalo eram reservados só para a nobreza?» Eu não percebi imediatamente e o meu rosto demonstrou isso mesmo. «Os outros, o povo, os mais pobres…» Insistia o meu avô para eu perceber, «…esses faziam o duelo a pé, mas geralmente, o julgamento das classes mais baixas, envolvia outros meios, como o uso da água fervente ou do fogo, o que, como deves imaginar dificultava a hipótese de provar a inocência. Só quem sobrevivesse ou sarasse rapidamente as feridas resultantes dessas provas é que era considerado inocente… o que, com certeza, não devem ter sido muitos…». Isto deixou-me a pensar e mesmo com o passar do tempo não me esqueci e procurei saber mais sobre este assunto. O que o meu avô falava era dos conhecidos Julgamentos por Ordálio e estes eram muito variados. Tinham como função habilitar um juiz a proferir a sentença de um acusado – a inocência ou a culpa –, acreditando que a resposta vinha de Deus. As práticas mais comuns do Ordálio envolvem sempre a submissão do acusado a uma prova dolorosa: os tais duelos a cavalo para os nobres e a pé para as restantes classes; mergulhar o braço em água fervente em que a inocência dependia da rapidez com que o braço sarava; caminhar sobre carvão em brasa; engolir um pedaço de pão benzido sem ficar asfixiado; ser lançado num tanque de água benta onde caso flutuasse era considerado culpado; segurar ferros em brasa; entre outras ideias que nunca nos passariam pela imaginação. Estes julgamentos eram muito populares em casos de bruxaria e de heresia e, felizmente, remonta a uma época bem antiga, a Época Medieval. Apesar de ter sido proibida pela igreja no século XIII, a prática manteve-se ainda por vários séculos.
O meu avô continuou a contar episódios dessa época de forma impressionante, parecia ter vivido ou assistido a tudo aquilo. Tinha um dom especial para contar histórias, deixando-me sempre ansiosa e à espera de mais, num misto de curiosidade e de medo. Sim, muitas histórias deixaram-me amedrontada, chegava a sonhar de noite com muitas delas, mas nunca disse nada, com receio que ele deixasse de as contar. A minha avó dizia-me, algumas vezes baixinho ao meu ouvido, outras bem alto sem se importar quem ouvia, «Não sei como é que ainda consegues ouvir essas histórias». Dessa vez o meu avô ouviu e disse rapidamente: «Para uma boa história tem que haver sempre um bom ouvinte!» E sorria para mim, piscando o olho, realçando a nossa cumplicidade. No fundo, éramos iguais. A nossa mente facilmente se desligava daquilo que nos rodeava para divagar em histórias fantásticas. O meu avô leu-me uma vez um trecho que, dizia, parecia ter sido escrito para nós. Era do livro "Viagens na Minha Terra", de Almeida Garrett. Foi a primeira vez que contactei com esse livro e posso dizer que já perdi a conta das vezes que já o li desde então. O trecho é assim: “Sou sujeito a estas distracções, a este sonhar acordado. Que hei-de eu fazer? Andando, escrevendo, sonho e ando, sonho e falo, sonho e escrevo”.
Como sempre, o meu avô tinha razão e hoje escrevo, sorrindo e piscando o olho: Para uma boa história tem que haver sempre um bom leitor…!

segunda-feira, 9 de junho de 2008

Sabias que... (II)

Era a Rua do Pinhal que me guiava até à casa dos meus avós. Uma recta de inclinação bastante acentuada, muito estreita e ladeada de pequenas casas. No alto, após uma ligeira curva, ficava a minha escola, local onde eu e os meus amigos planeávamos sobre a forma como iríamos descer essa rua. Assim que terminavam as aulas, ao fim da manhã, e depois de combinada a estratégia da descida, começava o desafio. Ou corríamos esbaforidos pela rua abaixo, fugindo ao rótulo de “cabeça de bezerro” atribuído ao último a chegar, ou descíamos montados nas trotinetes que cada um construía com tábuas e rolamentos que íamos buscar ao ferro-velho do vizinho Mário, ou ainda, de outra forma qualquer desde que tivesse velocidade à mistura. Ideias não nos faltavam, assim como, cabeças, braços ou pernas partidas. Chegava a casa dos meus avós, ofegante das corridas que travava, e o meu trajecto era sempre o mesmo: abria a porta ajudada ainda pelo balanço da descida; largava a mala no chão da cozinha; ouvia nas minhas costas a repreensão da minha avó «Ó rapariga, não andes a correr feita maluca…»; e corria para a sala à procura do meu avô. Era assim todos os dias e, nem eu, nem ele, aceitávamos que fosse de outra maneira apesar das várias tentativas da minha avó de me convencer a não correr pela casa e a guardar a mala no sítio certo. E ia ter logo com o meu avô, não porque gostasse mais dele que da minha avó, mas porque ele era mais resmungão que ela e se lhe faltasse o beijo da chegada, bem podia ouvi-lo durante horas.
Num desses dias, estanquei à porta da sala a observá-lo. Estava sentado na sua poltrona a ler um livro. Ouvindo-me, olhou para mim e sorriu convidando-me a entrar. Em dois passos fiquei ao seu lado e beijei a face que me volveu. «O que estás a ler, avô?», perguntei. Ele olhou para o livro, fechou-o e vi que não era um livro mas sim uma espécie de caderno. «São apontamentos antigos», respondeu, «Que nos contam coisas muito interessantes…». Eu olhei o caderno, questionando-me sobre ele, mas depressa as minhas perguntas ficaram no ar, interrompidas pelo avô, «Sabias que há pessoas que conseguem escrever a dormir?». Nessa altura, as perguntas estranhas, já não me espantavam. O avô era assim mesmo. As suas histórias preferidas envolviam sempre mistérios, seres estranhos, temas sombrios e sobrenaturais. Eu adorava todas as suas histórias e ouvia-o sempre com muita atenção. Voltou a abrir o livro e mostrou-me os apontamentos. Estava escrito numa caligrafia muito simétrica, parecia quase desenhada, mas ilegível para mim. «Este livro, por exemplo, foi escrito pelo meu bisavô enquanto dormia. E o mais curioso é que ele pouco sabia escrever, para além do seu nome… Ele acordava de manhã e encontrava na mesinha de cabeceira o caderno com várias folhas escritas com a sua letra». «Escrevia o quê?», perguntei eu, curiosa, «Coisas que não eram da sua época, o que o deixava abismado, histórias antigas, passadas noutro continente que nem sequer conheceu. Tem como tema principal o ouro que havia em abundância no interior do Brasil. Os textos foram escritos na primeira pessoa, como se fosse uma longa carta, e era com certeza de um explorador mineiro que contava as suas aventuras em locais recônditos em busca desse metal precioso…». Aproveitei a pausa que fez e acomodei-me no seu colo pegando no caderno que o meu avô ainda segurava aberto. Olhei-o de perto e tentei ler algumas palavras. Era difícil perceber aquele manuscrito antigo, mas não era impossível. «Posso ler, avô?», perguntei. «Claro que sim, quando quiseres... mas tens que o tratar com delicadeza, pois é um livro antigo e valioso para a nossa família». Eu aceitei, mas havia ainda uma coisa que me desassossegava e perguntei rapidamente, antes que a minha avó nos chamasse para almoçar, «Mas avô, como é que sabiam que o bisavô estava mesmo a dormir enquanto escrevia este caderno?», questionei. «Claro que estava a dormir! Houve várias testemunhas, familiares, essencialmente, que o viram a escrever de olhos fechados e, incrédulos, tentavam comprovar isso mesmo. Chegaram a colocar objectos na sua frente, impedindo-o de ver o caderno, mas ele continuava a escrever direitinho nas linhas, com a caligrafia perfeita, como se estivesse de facto a ver…». Entoou as últimas palavras em jeito de conclusão e, como que em sintonia, a minha avó chamou-nos para almoçar. «Já vamos, querida!» respondeu meu avô, pondo-me no chão e levantando-se prontamente.
O meu avô nunca me mentiu. De facto, este fenómeno está documentado e é conhecido por escrita automática havendo vários testemunhos sobre este poder espantoso do cérebro humano que capacita, subitamente, com o dom da escrita, pessoas que nunca antes tinham composto qualquer texto mais elaborado. A escrita automática tornou-se popular na segunda metade do século XIX. O método varia, mas geralmente, o escritor, de olhos fechados, pega ao de leve na caneta e espera que a escrita comece. O acto físico é, em geral, mais rápido que a escrita normal e quem escreve pode não ter conhecimento de algumas das palavras que aparecem. Tais casos de escrita automática surpreendem e intrigam os incrédulos, pois, em alguns casos documentados, mesmo de olhos fechados ou tapados sem ver absolutamente nada o escritor escrevia e no final rectificava nos locais exactos. Escritoras como Geraldine Cummins, irlandesa nascida em 1890, que publicou 15 livros de escrita automática, ou Pearl Curran, uma dona de casa americana, de instrução básica, que era contactada através da escrita automática por Patience Worth, uma mulher que morreu três séculos antes (XVII), e que sob sua orientação produziu cinco romances históricos, além de numerosos poemas e provérbios, são alguns dos exemplos mais conhecidos e comentados.
Como não duvido do meu avô, prefiro não arriscar. Assim, enquanto vos conto esta história, e para além dos cafés que já bebi, estou a fazer um esforço enorme para não fechar os olhos, evitando mesmo em pestanejar. Não quero ser acusada um dia deste, pela Sociedade Portuguesa de Autores, de plágio ou qualquer outra coisa parecida…

domingo, 8 de junho de 2008

Sabias que... (I)

Foi do meu avô que ouvi contar a esmagadora maioria dessas histórias. Mas não eram fábulas ou contos para entreter, eram mesmo verdadeiras, como o meu avô insistia em dizer. Eram histórias de experiências vividas por amigos ou familiares, que passavam de geração em geração, para nunca se esquecer. Para mim, eram sempre surpreendentes, inacreditáveis, pois, não se reflectiam no meu quotidiano nem à minha realidade. Devo acrescentar que meu avô sempre teve um fascínio pelo mistério e o sobrenatural. Tinha a absoluta certeza que se alguém viu, sentiu ou ouviu algo, é porque esse “algo” existe, mesmo que seja inexplicável. Dizia-me muitas vezes, «nunca houve uma época sem mistérios». E eu, pequenina, acreditava nesses mistérios.
Esta história que vou contar foi uma das primeiras que o meu avô me contou, ou pelo menos, a primeira que me recordo. Puxava-me para o seu colo, sentando-me na sua perna esquerda, poupando a direita que já o obrigava a usar muletas, e começava assim: «Sabias que há pessoas que conseguem estar em dois sítios ao mesmo tempo?» Eu devia ter feito uma cara de espanto e não era para menos, isso só em sonhos. Lembro-me que ele ficou chocado por eu desconfiar. Com o tempo aprendi a acreditar em tudo o que me dizia. «Não sabias? Mas é verdade! Olha que eu sei do que falo! Tem acontecido com várias pessoas e uma delas era da tua família. Isto é verdade!» Lembrava-me, o avô, mais uma vez. «Não a conheceste, pois, nem eu a conheci. Foi meu pai que me contou. Chamava-se Almesinda… tia Almesinda...» Disse o nome pausadamente como se, ao mesmo tempo que falava, tentasse recordar algo. Olhou para a janela, semicerrou os olhos e continuou. «Viveu praticamente toda a vida num convento. Era uma freira extremamente devota, tão devota quanto bonita, alguns arriscaram mesmo em dizer que era a freira mais devota e bonita daquele convento. Passava horas e horas rezando a Deus e aos Santos, saltando refeições ou dormidas. Talvez por isso tenha sido bafejada com o milagre da duplicação. Se já nessa altura lhe era possível estar presente em dois sítios diferentes, ninguém o soube. Só mais tarde, quando adoeceu, ainda muito jovem, tendo ido para casa do irmão, é que começaram os avistamentos da tia Almesinda em vários locais e por várias pessoas. Para todos os que a viam parecia-lhes impossível de acreditar, pois, sabiam que ela jazia deitada na sua cama, doente sem se mexer». Voltou a olhar para mim. «Mas que era ela, era! Disso, ninguém duvidou!». Disse, abrindo muito os olhos, esticando o indicador da sua mão enrugada, como se dissesse algo que naquele momento me convenceria da veracidade da história, retirando de vez qualquer dúvida que eu pudesse ter. «Por isso te digo: há pessoas que conseguem estar em dois sítios ao mesmo tempo». E eu anuí com a cabeça, também com os olhos bem abertos, demonstrando a minha total credulidade.
O meu avô nunca me mentiu. Hoje sei que esse fenómeno é conhecido por bilocação. Aliás, a bilocação seria um dos muitos milagres de Santo António de Lisboa. Textos antigos contam-nos que, enquanto pregava na Igreja de S. Pierre du Queyroix, em Limoges, França, na Páscoa de 1226, Santo António lembrou-se que tinha outro compromisso num mosteiro a muitos quilómetros dali. Assim, enquanto ajoelhado rezava, à vista dos paroquianos, no outro lado distante, os monges do mosteiro viram-no também a fazer leituras na tal cerimónia combinada. Tal como este, há muitos relatos verosímeis de pessoas que parecem ter conseguido estas aparições impossíveis, principalmente no meio católico, mas não só, em outras religiões e crenças existem também relatos de duplicação espiritual, nomeadamente, no budismo.
Embora não duvide do meu avô, confesso que é difícil de acreditar, até porque eu mesma já tentei a bilocação em várias ocasiões em que esse fenómeno me daria alguma vantagem. Escusado será dizer que tive que refazer várias vezes a minha agenda…