sexta-feira, 18 de julho de 2008

Sabias que... (III)

As tardes das sextas-feiras eram as minhas preferidas. Íamos todos, eu, os meus primos, os meus avós e o Bilas, o nosso cão rafeiro, até a um moinho velho que ficava a mais ou menos a dois quilómetros da casa dos meus avós. Era o sítio ideal para brincarmos. Para nós, aquelas paredes velhas e degradadas não eram de um moinho, mas sim, de um castelo enorme, onde eu e os meus primos imaginávamos um dia poder viver como reis e rainhas. João, o mais velho, fazia questão de ser o rei sem nunca dar hipótese ao Zé que exigia o mesmo. Comigo não havia picardias por ser a única rapariga. Tinha direito a ser o que quisesse, rainha, princesa, aia, qualquer coisa desde que não retirasse o protagonismo aos rapazes. Quando lá chegávamos, os papéis estavam já devidamente distribuídos: eu, independentemente do título que escolhia, tinha sempre as funções de limpeza e arrumação do “castelo” e a eles cabia-lhes sempre o papel de mandar-me limpar e arrumar esse “castelo”. A brincadeira começava com a procura de paus, troncos, folhas, pedras, tudo o que pudesse substituir os objectos necessários num castelo. Logo a seguir começava a encenação. Encarnávamos os nossos papéis com muito empenho e dedicação, e muitas vezes, dávamos continuação à história que já havíamos começado na sexta-feira anterior. A brincadeira durava quase toda a tarde até que um de nós se chateava com alguma coisa e aí começava a confusão. Discutíamos, aos gritos uns com os outros, por vezes, ou melhor, a maioria das vezes, com contacto físico, até que a avó ou o avô intervinham e obrigavam-nos a parar. Então, cada um ia para o seu lado, evitando olhar uns para os outros e começávamos a brincar sozinhos ou só com o Bilas, mostrando que não precisávamos de ninguém para nos divertirmos.
Era o meu avô que quebrava o silêncio e a separação entre nós com as suas histórias, despertando a nossa curiosidade: «Vocês fazem-me lembrar histórias muito antigas que costumava ouvir. Querem que vos conte?» Ainda amuados, respondíamos afirmativamente com a cabeça, sem proferir uma palavra. «Há muitos anos atrás, as pessoas, quando eram acusadas de fazer algo errado ou que fosse contra os princípios morais da época, eram sujeitas a um duelo para provar a sua inocência.» A sorrir acrescentou: «Parecia mesmo o que estavam a fazer, não era?». Nenhum de nós se manifestou. E o avô continuou. «Nessa época, achavam que, com esse método, estavam a entregar a decisão a Deus, ou seja, Deus salvaria os inocentes. Há uma história sobre o Conde de Monforte que nos conta um pouco sobre esses duelos. Era um nobre muito elegante, que chamava a atenção de muitas raparigas e, certo dia, terá se envolvido com uma dama comprometida. Claro que já naquela altura os boatos espalhavam-se rapidamente e depressa chegou ao conhecimento do marido traído. Este não deu tempo a nenhum dos dois para esclarecerem a verdade. Decidiu entregar o assunto aos juízes responsáveis por esses julgamentos, para que se resolvesse através de um combate. Conde de Monforte sempre bradou a sua inocência dizendo que seu coração pertencia a uma outra dama, uma jovem de origens modestas, mas de nada lhe valeu, pois, não conseguindo vencer o duelo a cavalo que durara três dias, foi obrigado a viver em exílio fora do seu país, longe da família e da sua recente paixão». Eu, talvez devido ao papel que encarnara na brincadeira com os meus primos, já me imaginava no lugar dessa tal jovem enamorada vendo o seu amado afastar-se para sempre e, como romântica que já nessa altura era, afigurava rapidamente na minha cabeça, um encontro futuro entre o casal, uma troca de cartas, um romance perfeito, enfim, um final feliz… Mas depressa retomei o que o meu avô dizia, «…esses combates eram vistos por toda a população e eram dias considerados de festa realizando-se em sítios estratégicos, de forma a serem vistos por todos. A maioria das cidades já previa um espaço próprio para estes eventos onde, para além destes duelos, se realizavam também jogos, teatros e festas proporcionadas pela Corte». Nesta altura, já só eu prestava atenção à história que o meu avô contava. Os meus primos, como sempre, depressa se distraíam com qualquer outra coisa, deixando rapidamente de dar atenção ao que o meu avô contava, o que o desgostava muito. Comigo era tarefa fácil, eu era a impressionável da família, a crédula, a sonhadora, e levava muito a sério tudo o que o meu avô contava. Para mim eram factos e não histórias. O meu avô sabia isso e gostava de apimentar a minha curiosidade. Desta vez, olhando só para mim, com os olhos bem abertos, perguntou quase num sussurro, «Sabias que esses julgamentos por duelo a cavalo eram reservados só para a nobreza?» Eu não percebi imediatamente e o meu rosto demonstrou isso mesmo. «Os outros, o povo, os mais pobres…» Insistia o meu avô para eu perceber, «…esses faziam o duelo a pé, mas geralmente, o julgamento das classes mais baixas, envolvia outros meios, como o uso da água fervente ou do fogo, o que, como deves imaginar dificultava a hipótese de provar a inocência. Só quem sobrevivesse ou sarasse rapidamente as feridas resultantes dessas provas é que era considerado inocente… o que, com certeza, não devem ter sido muitos…». Isto deixou-me a pensar e mesmo com o passar do tempo não me esqueci e procurei saber mais sobre este assunto. O que o meu avô falava era dos conhecidos Julgamentos por Ordálio e estes eram muito variados. Tinham como função habilitar um juiz a proferir a sentença de um acusado – a inocência ou a culpa –, acreditando que a resposta vinha de Deus. As práticas mais comuns do Ordálio envolvem sempre a submissão do acusado a uma prova dolorosa: os tais duelos a cavalo para os nobres e a pé para as restantes classes; mergulhar o braço em água fervente em que a inocência dependia da rapidez com que o braço sarava; caminhar sobre carvão em brasa; engolir um pedaço de pão benzido sem ficar asfixiado; ser lançado num tanque de água benta onde caso flutuasse era considerado culpado; segurar ferros em brasa; entre outras ideias que nunca nos passariam pela imaginação. Estes julgamentos eram muito populares em casos de bruxaria e de heresia e, felizmente, remonta a uma época bem antiga, a Época Medieval. Apesar de ter sido proibida pela igreja no século XIII, a prática manteve-se ainda por vários séculos.
O meu avô continuou a contar episódios dessa época de forma impressionante, parecia ter vivido ou assistido a tudo aquilo. Tinha um dom especial para contar histórias, deixando-me sempre ansiosa e à espera de mais, num misto de curiosidade e de medo. Sim, muitas histórias deixaram-me amedrontada, chegava a sonhar de noite com muitas delas, mas nunca disse nada, com receio que ele deixasse de as contar. A minha avó dizia-me, algumas vezes baixinho ao meu ouvido, outras bem alto sem se importar quem ouvia, «Não sei como é que ainda consegues ouvir essas histórias». Dessa vez o meu avô ouviu e disse rapidamente: «Para uma boa história tem que haver sempre um bom ouvinte!» E sorria para mim, piscando o olho, realçando a nossa cumplicidade. No fundo, éramos iguais. A nossa mente facilmente se desligava daquilo que nos rodeava para divagar em histórias fantásticas. O meu avô leu-me uma vez um trecho que, dizia, parecia ter sido escrito para nós. Era do livro "Viagens na Minha Terra", de Almeida Garrett. Foi a primeira vez que contactei com esse livro e posso dizer que já perdi a conta das vezes que já o li desde então. O trecho é assim: “Sou sujeito a estas distracções, a este sonhar acordado. Que hei-de eu fazer? Andando, escrevendo, sonho e ando, sonho e falo, sonho e escrevo”.
Como sempre, o meu avô tinha razão e hoje escrevo, sorrindo e piscando o olho: Para uma boa história tem que haver sempre um bom leitor…!