segunda-feira, 9 de junho de 2008

Sabias que... (II)

Era a Rua do Pinhal que me guiava até à casa dos meus avós. Uma recta de inclinação bastante acentuada, muito estreita e ladeada de pequenas casas. No alto, após uma ligeira curva, ficava a minha escola, local onde eu e os meus amigos planeávamos sobre a forma como iríamos descer essa rua. Assim que terminavam as aulas, ao fim da manhã, e depois de combinada a estratégia da descida, começava o desafio. Ou corríamos esbaforidos pela rua abaixo, fugindo ao rótulo de “cabeça de bezerro” atribuído ao último a chegar, ou descíamos montados nas trotinetes que cada um construía com tábuas e rolamentos que íamos buscar ao ferro-velho do vizinho Mário, ou ainda, de outra forma qualquer desde que tivesse velocidade à mistura. Ideias não nos faltavam, assim como, cabeças, braços ou pernas partidas. Chegava a casa dos meus avós, ofegante das corridas que travava, e o meu trajecto era sempre o mesmo: abria a porta ajudada ainda pelo balanço da descida; largava a mala no chão da cozinha; ouvia nas minhas costas a repreensão da minha avó «Ó rapariga, não andes a correr feita maluca…»; e corria para a sala à procura do meu avô. Era assim todos os dias e, nem eu, nem ele, aceitávamos que fosse de outra maneira apesar das várias tentativas da minha avó de me convencer a não correr pela casa e a guardar a mala no sítio certo. E ia ter logo com o meu avô, não porque gostasse mais dele que da minha avó, mas porque ele era mais resmungão que ela e se lhe faltasse o beijo da chegada, bem podia ouvi-lo durante horas.
Num desses dias, estanquei à porta da sala a observá-lo. Estava sentado na sua poltrona a ler um livro. Ouvindo-me, olhou para mim e sorriu convidando-me a entrar. Em dois passos fiquei ao seu lado e beijei a face que me volveu. «O que estás a ler, avô?», perguntei. Ele olhou para o livro, fechou-o e vi que não era um livro mas sim uma espécie de caderno. «São apontamentos antigos», respondeu, «Que nos contam coisas muito interessantes…». Eu olhei o caderno, questionando-me sobre ele, mas depressa as minhas perguntas ficaram no ar, interrompidas pelo avô, «Sabias que há pessoas que conseguem escrever a dormir?». Nessa altura, as perguntas estranhas, já não me espantavam. O avô era assim mesmo. As suas histórias preferidas envolviam sempre mistérios, seres estranhos, temas sombrios e sobrenaturais. Eu adorava todas as suas histórias e ouvia-o sempre com muita atenção. Voltou a abrir o livro e mostrou-me os apontamentos. Estava escrito numa caligrafia muito simétrica, parecia quase desenhada, mas ilegível para mim. «Este livro, por exemplo, foi escrito pelo meu bisavô enquanto dormia. E o mais curioso é que ele pouco sabia escrever, para além do seu nome… Ele acordava de manhã e encontrava na mesinha de cabeceira o caderno com várias folhas escritas com a sua letra». «Escrevia o quê?», perguntei eu, curiosa, «Coisas que não eram da sua época, o que o deixava abismado, histórias antigas, passadas noutro continente que nem sequer conheceu. Tem como tema principal o ouro que havia em abundância no interior do Brasil. Os textos foram escritos na primeira pessoa, como se fosse uma longa carta, e era com certeza de um explorador mineiro que contava as suas aventuras em locais recônditos em busca desse metal precioso…». Aproveitei a pausa que fez e acomodei-me no seu colo pegando no caderno que o meu avô ainda segurava aberto. Olhei-o de perto e tentei ler algumas palavras. Era difícil perceber aquele manuscrito antigo, mas não era impossível. «Posso ler, avô?», perguntei. «Claro que sim, quando quiseres... mas tens que o tratar com delicadeza, pois é um livro antigo e valioso para a nossa família». Eu aceitei, mas havia ainda uma coisa que me desassossegava e perguntei rapidamente, antes que a minha avó nos chamasse para almoçar, «Mas avô, como é que sabiam que o bisavô estava mesmo a dormir enquanto escrevia este caderno?», questionei. «Claro que estava a dormir! Houve várias testemunhas, familiares, essencialmente, que o viram a escrever de olhos fechados e, incrédulos, tentavam comprovar isso mesmo. Chegaram a colocar objectos na sua frente, impedindo-o de ver o caderno, mas ele continuava a escrever direitinho nas linhas, com a caligrafia perfeita, como se estivesse de facto a ver…». Entoou as últimas palavras em jeito de conclusão e, como que em sintonia, a minha avó chamou-nos para almoçar. «Já vamos, querida!» respondeu meu avô, pondo-me no chão e levantando-se prontamente.
O meu avô nunca me mentiu. De facto, este fenómeno está documentado e é conhecido por escrita automática havendo vários testemunhos sobre este poder espantoso do cérebro humano que capacita, subitamente, com o dom da escrita, pessoas que nunca antes tinham composto qualquer texto mais elaborado. A escrita automática tornou-se popular na segunda metade do século XIX. O método varia, mas geralmente, o escritor, de olhos fechados, pega ao de leve na caneta e espera que a escrita comece. O acto físico é, em geral, mais rápido que a escrita normal e quem escreve pode não ter conhecimento de algumas das palavras que aparecem. Tais casos de escrita automática surpreendem e intrigam os incrédulos, pois, em alguns casos documentados, mesmo de olhos fechados ou tapados sem ver absolutamente nada o escritor escrevia e no final rectificava nos locais exactos. Escritoras como Geraldine Cummins, irlandesa nascida em 1890, que publicou 15 livros de escrita automática, ou Pearl Curran, uma dona de casa americana, de instrução básica, que era contactada através da escrita automática por Patience Worth, uma mulher que morreu três séculos antes (XVII), e que sob sua orientação produziu cinco romances históricos, além de numerosos poemas e provérbios, são alguns dos exemplos mais conhecidos e comentados.
Como não duvido do meu avô, prefiro não arriscar. Assim, enquanto vos conto esta história, e para além dos cafés que já bebi, estou a fazer um esforço enorme para não fechar os olhos, evitando mesmo em pestanejar. Não quero ser acusada um dia deste, pela Sociedade Portuguesa de Autores, de plágio ou qualquer outra coisa parecida…

1 comentário:

Anónimo disse...

Sabias que... foi muito complicado conseguir deixar aqui um comentário??? Tava sempre a dar erro, que raio! Bem, anyway... também gostei desta história... so proud of you!!! ;)

Beijinho***